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Editorial
Teresa Calçada e Elsa Conde
Encontramo-nos inseridos num novo ambiente em que a velocidade, a instantaneidade, a flexibilidade, a mobilidade, a experimentação e a mudança são algumas das marcas não só das práticas de literacia na Web, mas também das práticas sociais e culturais da nossa vida.
José Afonso Furtado

A revista Entreler apresenta-se com o propósito e a vontade de trazer à reflexão e ao debate ensinamentos e apreensões produzidos na área do livro e da leitura, da escrita e das literacias. Promover um contraditório de ideias e práticas que fomente conhecimento qualificado é vital ao desenvolvimento de uma cultura leitora, garantindo a construção e a adaptação a novas ecologias da leitura, com as condicionantes próprias da sua longuíssima história. Uma história de compreensão e reinvenção permanentes da palavra, fundadora do ser pensante que somos, bem civilizacional que não se pode perder e de que não desejamos desistir. A palavra, qualquer que seja a sua forma e representação, é um lugar por excelência do humano, o lugar da sua imortalidade. 

Tratar o conceito evolutivo de leitura – filosófico, antropológico, económico, linguístico, sociológico e literário – em toda a sua complexidade, numa perspetiva crítica e analítica, é uma exigência conceptual. Num tempo de coexistências improváveis - múltiplos ecrãs, plataformas, livros em papel e ebooks, redes sociais, influenciadores, algoritmos, inteligência artificial, entretenimentos aditivos, leitores multimodais, literacias múltiplas e transliteracias,…-, ler é resistir à liquefação do mundo, um imperativo ético e de sabedoria. 

É com escritores, pensadores, investigadores, autores e analistas, mas igualmente com leitores, que se constroem os textos convocados para o exercício intemporal da leitura e da escrita, numa miríade de linguagens que constituem o nosso corpo social, marcado por novas formas de comunicação, acesso e uso de informações em rede,  abundantes, imediatas e obscuras, sobrando ao ser pensante, enquanto sujeito leitor, construtor  não-passivo, livre e autónomo, a  posse  de um  trabalhado sentido  crítico e funcional, para defesa de si próprio e do outro. Só com habilidades acrescidas o leitor, hoje multimodal, será capaz de ler, de forma integrada, textos que utilizam sistemas semióticos, individuais ou combinados, que lhe permitem, pelo recurso a tecnologias várias, um maior e melhor olhar, livre e crítico. 

As relações que os homens foram estabelecendo com os livros e as metamorfoses sofridas pelo ato da leitura, com incidência no aparecimento da Internet e do hipertexto, e as consequentes mudanças comportamentais evidenciam as novas formas de literacia consolidadas.

Refletir sobre esta relação existente entre linguagens, comunicações e cibercultura é a forma de colaborar na criação de sentidos e significados para a leitura, a escrita e as literacias hoje, que pode e deve ser acolhida pela revista Entreler, enquanto lugar de debate e pensamento.  

Porque na leitura está implicado o que escreve e o que lê, relação de mais do que uma subjetividade, ela é uma experiência humana total, uma verdadeira facilitadora da leitura do mundo. 

Os artigos escolhidos para esta edição surpreenderam os próprios organizadores da revista pelo seu elevado número, grande variedade e superior qualidade. Distribuímo-los, para facilidade de leitura, por quatro domínios: Estudos, Práticas, Digital e Memória. Do primeiro, fazem parte três artigos que nos levam à tomada de consciência da importância que é devida à materialidade do livro no ato de ler, reificando o livro e a leitura mais como um evento do que como um objeto; ao conhecimento sobre as práticas de leitura de livros em Portugal e o perfil dos leitores de livros, desvendando alguns dos hipotéticos sinais da mudança social e cultural que atravessam a sociedade portuguesa; à compreensão dos fundamentos e das estratégias que norteiam a promoção da leitura e o desenvolvimento de competências de literacia junto da população adulta, com destaque para a importância do envolvimento dos adultos em práticas de leitura autênticas e significativas. No domínio das Práticas, ficamos a par do sentido de projetos e atividades como o Histórias em 77 Palavras, desafios de escrita cujo impacto na progressão dos alunos se pretende avaliar; o percurso de capacitação dos adultos enquanto leitores, que ocorre diariamente no Centro de Educação, Formação e Certificação da SCML, aliando a didática à promoção dos hábitos de leitura; e o Metamorfoses, um projeto que associa a ciência e a tecnologia com a leitura e a escrita, promovendo a literacia científica e literária dos jovens do ensino secundário. No domínio do Digital, debatem-se possíveis aplicações da ciberliteratura, usando a literatura digital como ferramenta inovadora e experimental no âmbito do desenvolvimento de estratégias de educação ambiental; e explora-se a prevalência das práticas de leitura em grupo nos ambientes online, usando meios e assumindo formas muito distintos dos dos clubes de leitura que precederam o advento da Internet, com que passaram a conviver. Por fim, no domínio dedicado à Memória, escreve-se sobre os livros que a edificam. Num contexto de profusa edição de obras sobre o Holocausto, será fundamental conhecer a natureza dos títulos publicados se queremos compreender o modo como se vai construindo a sua memória, feita atualmente de numerosas e múltiplas leituras. É também uma incursão pelas obras literárias do património bibliográfico da Escola Secundária de Camões que nos é proposta pela sua Biblioteca Histórica, num processo ativo de apropriação e de valorização das suas referências culturais por toda a comunidade educativa.

Numa altura em que tanto se tem discutido a relevância e a autoridade dos cânones literários, o n.º 1 da Entreler oferece, ainda, aos seus leitores, uma estimulante entrevista conduzida por Miguel Real a Eugénio Lisboa e Miguel Tamen, a propósito dos seus livros, respetivamente, Vamos Ler! Um Cânone para o Leitor Relutante, editado pela Guerra e Paz, e O Cânone, escrito em coautoria com António Feijó e João Figueiredo e editado pela Tinta da China.

Finalmente, apresenta-se ainda um conjunto de propostas A Ler, dedicadas aos temas do livro, da leitura e da escrita, que esperamos venham a inspirar outras tantas leituras.

Terminamos com uma palavra de agradecimento: não só aos autores e a todos quantos contribuíram para a publicação deste número da revista, mas também aos leitores que nos (entre)leem.

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