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DIGITAL
A leitura na era da crisálida digital.
O caso Revistas de Ideias e Cultura (ric.slhi.pt)
Reading in the time of digital chrysalis.
The case of Revistas de Ideias e Cultura (ric.slhi.pt)
Luís Andrade

RESUMO

A partir do levantamento das grandes questões que a mutação digital das sociedades contemporâneas suscita, o autor considera algumas das principais alterações revolucionárias introduzidas na edição e na leitura pela utilização de recursos electrónicos.

A análise do Portal Revistas de Ideias e Cultura (RIC), que procede à publicação de websites de revistas portuguesas do século XX, permite ilustrar, objectivar e estudar aspectos relevantes da mudança de paradigma trazida pela publicação e pela leitura em suporte informático a partir de uma referência concreta, complexa e tida por bem-sucedida.

Procede-se, assim, à análise dos objectivos, das metodologias e dos resultados do Portal RIC, ao mesmo tempo que se problematizam os critérios e as práticas a que a sua concepção e o seu desenvolvimento se subordinaram.

Verifica-se, nomeadamente, que muitas das dicotomias intrínsecas à produção de impressos se encontram superadas pelos processos de edição e de leitura digitais, ao mesmo tempo que as ordens de grandeza envolvidas se alteraram substancialmente, como resulta claro da simples consideração de o público do Portal exceder os 70 000 leitores e o número de páginas consultadas se cifrar em 1 800 000.

No quadro sintético desta abordagem de fundo holístico, procura-se, ainda, conjugar a identificação de linhas de fractura introduzidas pela discursividade digital com o significado que lhes pode ser imputado na vida social, política e cultural.  

ABSTRACT

Starting from the major issues raised by the digital mutation of contemporary societies, the author considers some of the main revolutionary changes in editing and reading resulting from the use of electronic resources.

The analysis of the Revistas de Ideias e Cultura Portal, which publishes websites of twentieth-century Portuguese magazines, creates the opportunity to illustrate, substantiate, and study relevant aspects of the paradigm shift brought about by digital publishing and reading from a concrete, complex, and hopefully successful reference.

As such, the objectives, methodologies, and results of the RIC Portal are discussed, while also questioning the criteria and practices underlying its conception and development.

It is shown that many of the intrinsic dichotomies of the production of print publications are overcome by the digital editing and reading processes. In addition, the orders of magnitude involved have shifted substantially, as it becomes clear when considering that the portal’s audience is currently over 70,000 readers and 1 800 000 pageviews.

In the synthetic framework of this holistic approach, the author also seeks to combine the identification of fault lines created by digital discursivity with their possible significance to social, political, and cultural life.

PALAVRAS-CHAVE

leitura digital, edição digital, revistas, humanidades, mutação informática

KEYWORDS

digital reading, digital edition, magazines, humanities, digital mutation

NOTA CURRICULAR

Luís Andrade é professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (aposentado), director do Portal Revistas de Ideias e Cultura e coordenador do Seminário Livre de História das Ideias e do Grupo de Investigação Pensamento Moderno e Contemporâneo do CHAM – Centro de Humanidades.

Introdução

A edição digital representa uma metamorfose no âmbito da produção, circulação e leitura de textos que só encontra paralelo histórico na difusão da imprensa com tipos móveis.

A percepção da mutação radical introduzida pelos meios informáticos nos domínios da publicação, acesso e uso textuais tornou-se patente ainda nos finais do século passado, apesar do carácter relativamente rudimental quer das modalidades editoriais quer dos dispositivos de acesso, que rapidamente se desenvolveram em novas funcionalidades e se multiplicaram com computadores compactos, tablets e smartphones.

Logo em 1997, Roger Chartier sublinhou que “a primeira tentação é comparar a revolução electrónica com a revolução de Gutenberg”, para acrescentar que “a revolução do livro electrónico é uma revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como na maneira de ler” e concluir que “esta revolução, fundada sobre uma ruptura da continuidade e sobre a necessidade de aprendizagens radicalmente novas, e portanto de um distanciamento com relação aos hábitos, tem muito poucos precedentes tão violentos na longa história da cultura escrita” [1].

Passado um quarto de século, o laroz deu lugar à crisálida: a escrita e a leitura digitais generalizaram-se e impuseram-se ao quotidiano de milhares de milhões de seres humanos que se encontram nas redes virtuais que compartilham.

1. O borboletário digital

Com subtileza furtiva, a “transição digital” configurou um mundo novo em que todas as áreas estruturantes da condição humana individual e colectiva se viram transfiguradas. A construção e a fruição do “eu” passou a contar com o uso do telemóvel como o âmago e o escapulário, mais ou menos narcísicos, da intimidade pessoal. A representação do outro derivou para os foros das chamadas redes sociais, segundo modelos grupais, por regra, fechados sobre si próprios e, como tal, pouco tolerantes face à diferença. O espaço público, alicerce da democracia, da liberdade e da representação comunitárias, conheceu a concorrência de redes de circulação massiva de informação alheias aos protocolos mediáticos instituídos e, assim, vulneráveis à difusão da falsidade e do obscurantismo. A alta finança passou a recorrer ao disfarce dos algoritmos para justificar saques injustificáveis. O trabalho foi reconfigurado através do home office e da subordinação dos serviços a relacionamentos assentes em plataformas digitais. A privacidade viu-se invadida pelas mil e uma imposições unilaterais de autorização de entrega de dados que verteram em domínio alheio muito do que até então era tido por pessoal. A vigilância, obtida através da definição de perfis alimentados por big data, alcandorou-se a um poder de rastreamento e de manipulação política e económica muito para além dos piores cenários imagináveis nos dias analógicos.

Simultaneamente, a própria vida quotidiana viu redefinidos os seus parâmetros mais elementares, como se verificou com a representação e o uso tanto do tempo quanto do espaço, bem como com as suas expressões e intercepções físicas, orgânicas e cognitivas. As barreiras espaciais desapareceram, pois ninguém se encontra, hoje, isolado, de tal modo o acesso à rede faculta uma ubiquidade tão ampla que convoca as referências e transporta às paragens mais remotas entre si. O fluir dos dias ficou, por sua vez, adstrito ao presente, como dimensão exclusiva da temporalidade, compreendida como corrente lépida, indeterminada e aberta. No novo aqui-e-agora, os ritmos humanos ganharam o viés da efervescência evanescente: a comunicação adveio instantânea, a reflexão viu-se ilidida e o saber conceptual e teórico passou a serôdio.

Como estas observações sumárias deixam transparecer, a Internet trouxe consigo uma alteração geral e radical na condição individual e colectiva, acolhida pelos cidadãos com a tranquilidade inerente a sentirem o seu quotidiano melhorado através do acesso à fala próxima, ao relacionamento social e afectivo ampliado, à informação contínua e à simplificação das tarefas correntes.

Ainda no plano das grandes comparações históricas, não é despropositado pensar que a mudança introduzida no ocaso do curto século XX de que falou Eric Hobsbawm, ocorrido com o crepúsculo do bloco soviético, representou igualmente o início efectivo do século XXI, de tal modo a emergência digital marca o surgimento de um mundo novo, com matriz no saber científico e técnico, à semelhança do que aconteceu com a aplicação do regulador de Watt, na passagem para o século XIX, e com a difusão do uso da energia eléctrica no dealbar da centúria seguinte.

Assim sendo, a revolução na edição e na leitura de que falava Roger Chartier, nas palavras acima transcritas, só pode ser compreendida no quadro de uma mutação metamórfica muito ampla, suficientemente aliciante para tornar a transfiguração sofrida tão tácita e, mesmo, natural que o seu questionamento e a sua discussão se revelam estranhamente escassos. 

2. A edição digital

A bonomia atribuível à difusão dos procedimentos digitais constituiu-se, em grande medida, através da sua percepção como prolongamento sequencial de práticas analógicas que por seu intermédio se viam potenciadas, em detrimento de qualquer compreensão da mudança de paradigma dos diferentes domínios em que a vida das sociedades se desdobra.

De acordo com esta sensação comum, a edição digital é vista, frequentemente, como uma ampliação e um complemento particularmente poderoso da edição impressa: as bibliotecas e os arquivos passariam a poder ficar disponíveis de forma progressiva e universal ao público leitor.

A acessibilidade às obras e às fontes constitui obviamente um bem precioso que tem justificado, um pouco por todo o lado, políticas públicas com recursos avultados e desenvolvimentos tecnológicos muito empenhados, capazes não só de publicar digitalmente as fontes impressas mas também de encontrar modelos e processos que permitam compatibilizar acervos muito distintos entre si em quadros de referência comum.

Porém, a edição electrónica não pode ser encarada como cingindo-se à missão de conferir um novo suporte a textos anteriormente produzidos com os tipos tipográficos. Observá-la como recurso que permite a simples reprodução documental, por mais importante que a difusão assim proporcionada justificadamente se revele, representa amputá-la do que traz de radicalmente original e, sobretudo, de inequivocamente promissor nos domínios da publicitação, da circulação e da leitura.

A edição digital de impressos pressupõe, desde logo, a produção meta-textual em maior ou menor escala, pois transforma a fonte considerada em objecto de análise e de laboração segundo critérios e procedimentos próprios.

Esta mudança de plano pode revestir-se de formas muito variadas e tem alcances muito distintos de acordo com o programa editorial em que se inscreve. Tanto pode visar a simples classificação documental e a respectiva integração, implícita ou explícita, em novas séries quanto proceder ao levantamento analítico do teor do objecto reproduzido, à agregação e disponibilização de dados e de outra informação que lhe seja conexa ou, mesmo, à criação de instrumentos da sua reinventiva, nomeadamente nos casos em que a fonte considerada possa ser encarada sob forma fragmentada.

Uma vez que não se reveste da forma física de um códex, a edição digital apresenta-se, por outro lado, como um empreendimento plástico, susceptível de conhecer a correcção, o aditamento e a reconfiguração. Expõe-se, a seu modo, como uma obra aberta e em progresso, tanto pelos meios colocados ao dispor do editor quanto pela ampliação sucessiva dos recursos informáticos aplicáveis, nomeadamente de reconhecimento gráfico ou de tratamento estatístico, também eles em processo inventivo.

Simultaneamente, a Wikipedia, e o seu sucesso retumbante nas primeiras décadas do século em que vivemos, documentou de forma abrangente como as novas modalidades de edição se revelaram capazes de produzir e de difundir massas de informação, com ordem de grandeza inimaginável, pois ascendem a algumas dezenas de milhões, segundo modelos de produção, circulação e recepção inteiramente inovadores.

Na enciclopédia virtual citada podemos ver ainda a ilustração de outras características fundamentais do trabalho de edição digital, desde logo a dissolução frequente do vínculo que unia a autoria à edição, substituído pelo labor colaborativo realizado nas diferentes instâncias do processo de produção. É de sublinhar, a este propósito, que a cooperação, identificada ou anónima, é uma exigência da própria publicitação por via electrónica, pois só a conjugação de entidades com contributos complementares, de distinta natureza institucional, disciplinar e técnica, pode estar em condições de efectivar os desígnios e de concretizar os empreendimentos próprios dos desafios ínsitos à escala da aproximação digital.

A edição na web trouxe consigo também um estilo de escrita próprio supostamente neutro e universal, que se subordina a registo de sumário informativo e evita a espessura própria do cruzamento de sensibilidades intertextuais. Embora de passagem, é de assinalar que esta pretensão denotativa e sintética faz sobrelevar frequentemente o primado cru e nu da referência empírica, ao mesmo tempo que resvala para o limiar em que as generalidades e o simplismo se confundem.    

Em resumo, o novo mundo editorial passou a permitir que todos aqueles que disponham de acesso a meios informáticos e à rede usufruam, nos nossos dias, de uma biblioteca com extensão ilimitada, reforçada, aliás, pelas políticas públicas de acesso aberto, ao mesmo tempo que podem usufruir de modalidades de consulta poderosas, desde o uso de hipertextos e dicionários a prontas pesquisas directas ou sofisticadas.

Também no plano social e político, a comparação com a inovação introduzida pela difusão da imprensa no remoto século XV parece justificar-se, de tal modo o acesso às obras de cultura conheceu, por via da web, um incremento muito alargado, ao colocar muitas das grandes referências das humanidades e das artes ao alcance de quem dispõe de meios que viram a sua divulgação generalizada.

É, por fim, de supor que o carácter benévolo inicial da mutação digital, que capitaliza o valor simbólico dos produtos culturais e pode servir os mais variados interesses, do recreio pessoal à investigação académica, contribuiu para fomentar uma empatia espontânea com as novidades que consigo trouxe, na medida em que precedeu outros usos de fundo intrusivo e manipulatório.

3. Quando ler é diferente de ler

A atenção à relação entre a materialidade do suporte e os protocolos de leitura impõe-se, nos nossos dias, como uma necessidade ostensiva, pois ler tornou-se uma actividade desigual, não só pela coexistência generalizada de fontes impressas e electrónicas, mas também, e fundamentalmente, porque o suporte digital deslocou a leitura do fio do acompanhamento de um itinerário discursivo para o ambiente de uma actividade multímoda, ao facultar uma paisagem textual que sobrepõe falas, enunciações, linguagens e registos distintos.

Por outras palavras, ler e navegar na web passaram a correr a par.

A experiência pessoal e quotidiana da generalidade dos que têm acesso à Internet é tão clara e intensa que se dispensam outras considerações a este propósito, pois todos recorremos a motores de busca para encontrar a informação ou as obras pretendidas, nos socorremos de links para transitar entre referências do nosso interesse, pesquisamos de modo simples ou avançado em bases de dados muitas vezes exaustivas, transitamos entre fontes e linguagens multimédia com matérias afins, fazemos uso das mais variadas ferramentas proficientes, desde a localização de palavras a resultados obtidos através de aplicações informáticas assentes em algoritmos complexos.

Simultaneamente, cada cibernauta tornou-se um editor virtual, o agente dos seus textos ou de materiais alheios, com que participa, com contas próprias ou acolhido por terceiros, no reino, mais ou menos cacofónico, do legítimo expender opinativo. O mesmo é dizer que a uma nova modalidade de leitura se acrescentou uma nova modalidade de escrita, por vezes, com normas imperativas, como acontece com a limitação de caracteres no Twitter.

Os efeitos da mudança de paradigmas de leitura resultantes do uso do suporte digital são necessariamente muito extensos, profundos e complexos, pelo que seria estultícia considerá-los, neste momento, mesmo que de forma sumária. Porém, todos aqueles que se interessam, nos nossos dias, pela observação das diferentes expressões da leitura, pela sua promoção e pela sua qualificação formativa não podem deixar de concentrar a sua atenção e reflexão nas mudanças trazidas nestes domínios pelo século XXI.

Como qualquer admirável universo novo, a edição e a leitura digitais comportam vantagens e riscos acrescidos face ao mundo que lhes era anterior, susceptíveis de serem observados com o optimismo de quem saúda a chegada democrática das grandes bibliotecas e da informação em geral ao pecúlio virtual de cada um, ou com o pessimismo de quem vislumbra a era de um linguarejar instantâneo e sem lastro, capaz de estiolar a edificação cultural assente no acolhimento pessoal de um legado que requer tempo e disponibilidade para ser interiorizado e vivido.

Subsistem, em qualquer um dos casos, duas certezas claras e distintas. Por um lado, o contexto da leitura e da sua promoção alterou-se radicalmente a partir do momento em que a edição digital passou a coexistir com a edição impressa, pelo que estas duas modalidades não podem deixar de ser consideradas conjuntamente. Por outro lado, o combate pela educação, a cultura, a liberdade, a democracia e a diferença trava-se, hoje e em grande medida, no universo digital, cuja virtuosidade não só nos domínios da difusão mas também da promoção e do incremento do saber humanístico se apresentam com uma aparência ilimitada.

4.  O Portal Revistas de Ideias e Cultura

Muitas das questões anteriormente colocadas podem ser observadas nas suas manifestações concretas e debatidas no seu significado preciso a partir do exemplo do Portal Revistas de Ideias e Cultura (RIC).

Este programa de publicação digital subordina-se ao objectivo de proporcionar a leitura das revistas que estruturaram a cultura portuguesa do século XX segundo os padrões editoriais e técnicos hodiernos.

Actualmente, o RIC faculta acesso a trinta colecções integrais dos principais periódicos culturais portugueses novecentistas, entre os quais se incluem A Águia, A Construção Moderna, Orpheu, Contemporânea, Sol Nascente, Seara Nova, KWY, O Tempo e o Modo, consultáveis edição a edição ou segundo oito índices, ao mesmo tempo que reproduz várias centenas de documentos e de estudos que lhes são conexos.

Por intermédio deste portal, o leitor pode aceder de imediato a muitos milhares de textos e de gravuras da autoria dos homens das letras e das artes mais conceituados no contexto da sua publicação original, como acontece com as 36 peças da autoria de Fernando Pessoa, as 369 de António Sérgio, as 85 de Teixeira de Pascoaes, as 96 de Irene Lisboa, as 25 de Ana de Castro Osório, as 108 de José Rodrigues Miguéis ou as 295 de Fernando Lopes-Graça.

O acesso universal a estas fontes primordiais, assim proporcionado, abre uma nova via de leitura à cultura portuguesa, tanto mais relevante quanto muitos dos movimentos de pensamento, sensibilidade e combate cívico do último século se estruturaram em torno de revistas, que constituem frequentemente a sua referência emblemática, e as colecções físicas destes periódicos se mostram de acesso difícil e lacunar, mesmo nas instituições de referência.

Porém, os websites dedicados a cada um dos títulos de imprensa que o portal reúne não se limitam a proceder à sua simples reprodução urbi et orbi, pois proporcionam igualmente um conjunto de recursos de leitura que permitem aceder ao seu teor segundo índices, ferramentas informáticas e registos estatísticos, além de integrarem dossiers com documentação fundamental para a compreensão do periódico e da sua história.

Basta confrontar as numerosas edições fac-similares de revistas das duas décadas finais do século XX, invariavelmente de grande mérito, com os websites do RIC para verificar, de imediato, as virtudes proporcionadas pelo estado actual da arte digital.

O leitor integra-se nesta revolução quando conduz a pesquisa através de oito índices – autores singulares, autores colectivos, conceitos, assuntos, nomes singulares citados, nomes colectivos citados, obras citadas e nomes geográficos – que lhe permitem orientar-se em objectos por vezes muito extensos, com milhares de páginas, e quase sempre complexos, pois agregam vários autores e diferentes registos, além de conhecerem, nos casos em que perduraram no tempo, distintos ciclos editoriais.

A cartografia de navegação conhece ainda itinerários complementares: estudos introdutórios originais, destaque dos textos programáticos, selecção de polémicas, recolha documental, inventários de testemunhos e de estudos, quadros estatísticos.

As modalidades de consulta revestem-se, em todos estes domínios, de uma grande amplitude, quer por os websites de cada uma das revistas poderem ser considerados isoladamente ou agregados entre si, quer por a pesquisa poder ser por título ou combinar todos os registos das bases de dados que mapeiam o teor das publicações e que suportam os índices disponibilizados.

O desenvolvimento da análise qualitativa de dados quantitativos, bem como a sua conversão em aplicações e em ferramentas digitais, permite antever que muitos outros dispositivos de circulação nos websites venham a estar disponíveis em futuro próximo, pois o trabalho exaustivo de recolha da informação contida nas bases de dados, adiante descrito, prepara-o e suporta-o.

Em última instância, pretende-se conferir novas competências a um leitor que passe a ser capaz de interrogar o objecto de leitura e de dispor dos instrumentos que lhe permitam responder às questões que suscita.

Para já, é certo que muitas perguntas simples ou elaboradas que não tinham resolução passaram a tê-la, ao mesmo tempo que algumas questões insuspeitas foram suscitadas pela simples observação de cômputos apurados.

5.  A tecedura da hemeroteca de bolso

Na origem e na condução do Portal RIC encontra-se o Seminário Livre de História das Ideias, cuja investigação se desenvolve actualmente no quadro do CHAM - Centro de Humanidades da FCSH. As parcerias com a Fundação Mário Soares e Maria Barroso, nomeadamente no plano informático, e com a Biblioteca Nacional de Portugal, sobretudo nos domínios documental e logístico, constituem igualmente fulcros matriciais e perenes do programa de trabalhos. Muitos outros apoios institucionais, acordos com proprietários dos títulos, convénios com unidades de investigação e colaborações com pesquisadores nacionais e estrangeiros contribuíram decisivamente para os resultados obtidos.

A disponibilização universal das revistas de ideias e cultura portuguesas do século XX é, como já ficou dito, o desiderato último do programa de trabalhos. A concretização deste objectivo ambicioso, mas em progresso, pressupõe a segmentação do universo considerado, o que tem determinado a selecção dos títulos a publicar em website de acordo com a sua relevância nos movimentos de pensamento e de sensibilidade de que foram os órgãos.

Até ao presente, os websites tomaram por objecto os periódicos da Renascença Portuguesa ou com esta relacionáveis (Nova Silva, A Águia, A Vida Portuguesa e Princípio), do chamado primeiro modernismo ou com presença significativa de Fernando Pessoa (Orpheu, Portugal Futurista, Contemporânea, Athena, Exílio, Centauro, entre outros), de doutrinação e propaganda libertária e anarco-sindicalista (A Sementeira, Germinal, Suplemento de A Batalha e Renovação), de afirmação e combate neo-realista (Cadernos da Juventude, Altitude, Sol Nascente e Ler),  de orientação feminista, designadamente ligados à acção de Ana de Castro Osório (Sociedade Futura, A Mulher Portuguesa). Títulos como a Seara Nova ou O Tempo e o Modo constituem marcos e inflexões intelectuais vultuosos só por si. A publicação do website de Atlantida, de João de Barros e de João do Rio, encetou uma maior atenção ao pensamento republicano, enquanto o website de A Construção Moderna antecipa a publicação de outros títulos de arquitectura e o site dedicado a KWY abre o caminho a novas revistas das artes.

À selecção cultural e historiográfica patente na escolha dos títulos publicados junta-se a utilização de critérios de biblioteconomia precisos, que facultam rigor ao mapeamento da informação contida em cada uma das peças publicadas nos periódicos, independentemente da sua extensão ou da sua natureza textual ou gráfica, e que garantem consistência sistémica às bases de dados, bem como a sua compatibilidade com as práticas alheias.

A produção de cada website obriga, ainda, a uma investigação aturada sobre a história, o significado e o contexto de cada revista, que se projecta na elaboração dos analíticos das peças que publicou, nomeadamente no plano conceptual e na identificação de autorias, e que tem a sua súmula nos materiais que constam no dossier que a passa a acompanhar.

Este último encontra-se na secção Magasin dos websites e colige documentos (prospectos, separatas, correspondência, entre outros), testemunhos (anteriormente publicados ou recolhidos para o efeito) e estudos (sob a forma de bibliografias, por vezes com reprodução integral de monografias, ou de antologia com teses, referências ou outras alusões particularmente significativas).

Embora esta recolha se pretenda genérica e rejeite a possibilidade de se constituir como repositório geral do periódico, pois dirige-se a públicos indiferenciados, é de sublinhar que muitos dos documentos publicados são inéditos relevantes para o conhecimento da cultura portuguesa contemporânea, na medida em que provêm de arquivos editoriais privados, como se pode verificar nos websites dedicados às revistas Seara Nova e Contemporânea.

Mesmo neste relance sobre a tecedura do Portal RIC, torna-se claro que o estudo, a edição e a publicação se revelam processos entre si complementares. Esta proximidade multímoda entre a fonte e o seu conhecimento coloca-se num plano distinto dos géneros de reprodução documental e de interpretação histórica anteriores à edição electrónica, desde logo porque os recursos informáticos não se cingem ao seu viés instrumental mas constituem também meios heurísticos e hermenêuticos poderosos e inovadores.

Investigar e dar a investigar passam igualmente a acompanhar-se, quer por os leitores ficarem em condições de definir itinerários à medida da curiosidade que os motiva, quer por a informação estar estruturada segundo blocos de dados criteriosos e genéricos, como acontece com as autorias, as redes conceptuais, as listagens de temas e assuntos, a recepção e a intertextualidade, os nomes de lugares.

6.  Os leitores

Como a facilidade em obter informações acerca de acessos na Internet se conta entre as novidades do mundo digital, os editores de websites passaram a dispor de indicadores relevantes na avaliação do alcance das suas iniciativas.

O cômputo geral das consultas no Portal RIC, entre 1 de Setembro de 2015 e 31 de Março de 2022, cifra-se, por defeito, em 78 517 utilizadores distintos - mais exactamente a partir de IP diferentes - que consultaram um total de 1 894 579 páginas. 78% destas leituras tiveram origem em Portugal e 22% no estrangeiro.

 

 Fonte: Google Analytics

 

Fonte: Google Analytics

 

A simples consideração destas informações permite observar que a publicação web constitui facilmente públicos vultuosos paralelos aos dos meios tradicionais de acesso à leitura, como pode concluir-se se tivermos em consideração que os inscritos, cumulativamente e ao longo de décadas, na Biblioteca Nacional de Portugal se situavam, na mesma data, em 120 717. Estes elementos confirmam, em segundo lugar, que o interesse suscitado pelas revistas culturais é efectivo e se mostra muito disseminado. Por fim, parece claro que o Portal RIC constitui um incentivo poderoso à leitura e à difusão da cultura portuguesa contemporânea.

A abordagem qualitativa do conjunto de leitores do Portal RIC revela-se, naturalmente, mais imprecisa, pois assenta em indicadores impressivos e circunstanciais. De qualquer modo, a recepção dispensada pela imprensa, com artigos regulares de divulgação dos websites mais significativos em jornais de referência, a colaboração recebida de instituições, a correspondência proveniente de leitores e a multiplicação de estudos em que o recurso às bases de dados do portal está patente indiciam que os websites publicados têm merecido um acolhimento amplo e continuado.

O convénio com a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo, e a criação, em Maio de 2022, do RIC-Brasil, com seis websites de revistas modernistas brasileiras, no quadro das comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo, parece confirmar também o reconhecimento do modelo editorial desenvolvido.

Conclusão

A mutação digital é, por regra, encarada como uma realidade adversa à cultura humanista que serve de fundação às sociedades democráticas, pois tende a rasurar os ritmos, a espessura e a mediação próprios da constituição das comunidades cultas e adultas.

Porém, o porvir informático é uma tendência inelutável que se impõe desde a criação do microchip e que responde à necessidade contemporânea de gerir grandes massas de informação. Está, mesmo, presente na mão de cada um sob a forma de gerações sucessivas de aparelhos com recursos de programação e de memória muito mais poderosos do que aqueles que permitiram à humanidade dar o passo lunar.

Trata-se, porém, de um novo contexto e não de um destino. Como este último continua a ser tecido pelos indivíduos e pelas comunidades, o combate pela difusão da leitura e da cultura letrada, exercício primeiro da memória e da salvaguarda colectivas, não pode deixar de travar-se também nesta nova condição estrutural, naturalmente com os meios informáticos que lhe são próprios e que permitem conferir-lhe modalidades originais de cultivo.

As sociedades mostraram-se sempre suficientemente contraditórias para que a dialéctica humanista continue presente na determinação individual e colectiva, quer pela razão substantiva de que a liberdade é proporcional à cultura compartilhada, quer pelo reconhecimento de que as humanidades subsistiram invariavelmente aos períodos em que se viram agrilhoadas pelas autoridades.

É esta convicção que preside, em última instância, ao Portal RIC.

Mas também neste âmbito as fronteiras analógicas se viram de tal modo superadas que o trabalho científico de mapear sistematicamente a cultura portuguesa contemporânea, de modo a vencer obstáculos epistemológicos quase intransponíveis e a proporcionar horizontes muito amplos ao conhecimento histórico, se mostra inteiramente compatível e complementar com a difusão e a fruição culturais junto de públicos que se caracterizam pela sua grande extensão e pela diversidade de interesses.

Eis, pois, uma junção feliz e oportuna que permite ter a pretensão de servir todos os concidadãos, académicos ou indiferenciados, desde que estes tomem “o legado reflexivo, livre e inconformista da cultura contemporânea como fonte de inspiração pessoal e cívica”[2].  

 

Nota: O autor deste artigo não segue o acordo Ortográfico de 1990.

NOTAS

[1] Roger Chartier (1997). Le livre em révolution, Entretiens avec Jean Lebrun. Editions Textuel (trad. port. A Aventura do livro. Do leitor ao navegador, Conversações com Jean Lebrun. Editora UNESP, 1999, pp. 7, 13 e 93).

[2] http://ric.slhi.pt/agora_impressa.

 

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