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PRÁTICAS
Leituras - ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento
Readings - tools of freedom: from literacy to literacy of thought
Anabela de Sousa Azevedo et al.

RESUMO

No Centro de Educação, Formação e Certificação (CEFC) da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) existem diferentes percursos formativos para adultos dos 18 aos 64 anos. Os diferentes percursos desde a Alfabetização até aos Cursos Tecnológicos de dupla certificação são assentes em pilares fundamentais que respeitam as histórias individuais de cada formando. A diversidade é o paradigma de base, onde o potencial de cada um não se esgota num rótulo fechado e onde a dignidade é restaurada. Num universo tão diversificado de experiências de vida, saberes e expectativas, a equipa educativa do CEFC focaliza a sua metodologia de trabalho na necessária diferenciação pedagógica que os múltiplos grupos em formação exigem, promovendo simultaneamente projetos comuns, rentabilizando as diferenças e singularidades dos seus participantes. A qualidade da intervenção realizada não se pauta por decretos de inclusão e procura conhecer, com rigor, o ponto de partida de cada formando, delineando posteriormente, e em conjunto, um percurso com sentido que promova as competências essenciais para viver em sociedade. Este artigo pretende ser uma viagem pelos caminhos de liberdade dos formandos através de diferentes leituras. Desde as ferramentas iniciais (ler, escrever e contar) até à partilha de reflexões, descrevem-se práticas diárias num percurso comum de capacitação de leitores. Formadores e formandos recriam ferramentas e organizam projetos promotores do sentido de cidadania. É deste entrecruzar de competências e desafios que se vão tecendo caminhos, onde as artes, a ciência e as emoções convergem para (re)escrever novas histórias de vida.

ABSTRACT

In the Centro de Educação, Formação e Certificação (CEFC) of Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) there are different training offers for adults aged between 18 and 64 years old. The different formation journey from Literacy to Academic and Professional Courses are based on fundamental principles that respect the individual life stories of each trainee. Diversity is the basic paradigm where the potential of each one doesn´t culminate in a closed-end and where individual dignity is restored. In such a diversity of life experiences, knowledge and expectations, the CEFC educational team focuses its work methodology on a pedagogical differentiation that the multiple groups in training require, as well as promoting common projects, capitalizing the differences and singularities of its participants. The quality of the intervention is not related to statements of inclusion and gets to know, with accuracy, the initial position of each trainee to build up, together, a meaningful journey that reinforces the essential skills to live in society. This article aims to be a journey through the trails of freedom of trainees through different readings. From the initial tools (reading, writing and counting numbers) to sharing reflections, daily practices are described in a common journey of training readers. Trainers and trainees reinvent strategies and organize projects that promote the awareness of citizenship. It is from this intertwining of competences and challenges that paths are being woven; arts, science and emotions converge to a (re)creation of new life stories.

PALAVRAS-CHAVE:

adultos, liberdade, leitura, literacia, diversidade

KEYWORDS

adults, freedom, reading, literacy, diversity

NOTA CURRICULAR DOS AUTORES

Anabela de Sousa Azevedo é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, pós-graduada em Ensino da Língua e Literatura Portuguesas - UTAD, Mestre em Ciências da Educação – Área de Especialização - Formação de Adultos pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Possui experiência profissional como docente de Português de ensino básico e secundário. É funcionária da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa desde 2005. Desempenha funções de formadora de Cultura, Língua e Comunicação, de gestora/mediadora de formação e dinamiza atividades do projeto Experiências de Leitura e Escrita no CEFC.

Carla Flores Clara, licenciada em Desenvolvimento Comunitário pelo ISPA - Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida. Formada pela Escola Superior de Educadores de Infância Maria Ulrich, desenvolveu a sua experiência profissional enquanto Educadora de Infância em diversos estabelecimentos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, e como coordenadora pedagógica no Centro de promoção social da PRODAC. Atualmente é formadora no CEFC, onde ministra módulos tecnológicos do curso de Técnico de Ação Educativa e colabora no projeto Experiências de Leitura e Escrita.

Carlos Bruno Alves é licenciado em Filosofia e pós-graduado no Ramo de Formação Educacional pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; pós-graduado em Promoção da Ação Social e Saúde pela Escola Superior de Saúde de Alcoitão. Possui experiência profissional como docente de Filosofia, Psicologia e Área de Integração no ensino secundário. É Técnico Superior na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa desde 2008, onde desempenha funções de formador de Cidadania e Empregabilidade, Cidadania e Profissionalidade, Expressões Artísticas, História do Design e do Mobiliário. Possui formação e experiência como músico, bem como em Ilustração e Design Gráfico.

Fátima Cristina Teixeira Mota é licenciada em Ensino de Português, pela Universidade do Minho, em Braga. Possui experiência profissional como gestora/mediadora sociopessoal de formação na Pastoral dos Ciganos; como formadora de Leitura e Escrita, Linguagem e Comunicação e Cultura, Língua e Comunicação em cursos de Educação e Formação de Adultos, bem como em Processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências. Atualmente, é professora do 3.º ciclo do ensino básico e secundário no Agrupamento de Escolas de Benfica e formadora externa no Centro de Educação, Formação e Certificação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Maria Joana Soares de Almeida é licenciada em Educação Básica – Professora de 1.º ciclo – pela Escola Superior de Educação de Setúbal; pós-graduada em Necessidades Educativas Especiais no domínio Cognitivo e Motor pelo ISCE; pós-graduada em Técnicas e Metodologias Ativas e Expressivas – Arte Educadora - ISLA; Mestre em Desenvolvimento e Perturbações da Linguagem pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e Escola Superior de Saúde de Setúbal. Atualmente desempenha funções como Professora de Educação Especial e Formadora na área de Leitura e Escrita no Curso de Alfabetização e nos Módulos sobre as Necessidades Educativas Especiais no Curso Técnicas de Ação Educativa no CEFC.

Sónia Jerónimo Camões Tavares é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses e Ingleses, com profissionalização no ramo Educacional - Universidade do Algarve – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Trabalhou como professora do 3.º ciclo do ensino básico/secundário e lecionou português a estrangeiros. É Formadora no Centro de Educação, Formação e Certificação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa nos cursos EFA, bem como em Processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências. Possui o Curso Avançado de Aplicações Pedagógicas e Institucionais da Arte-Terapia (Nível I), integrando técnicas artísticas no processo de ensino-aprendizagem (pedagogia através da arte).

INTRODUÇÃO

O Centro de Educação, Formação e Certificação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (CEFC-SCML) destina-se a apoiar e a motivar para a aprendizagem ao longo da vida jovens e adultos que se encontram em situação de risco/exclusão social, bem como todos aqueles que pretendem aumentar as suas qualificações académicas. Para o efeito, disponibiliza um serviço de acolhimento, orientação e formação focado em proporcionar uma resposta formativa que permita a promoção da literacia e o desenvolvimento das competências escolares, técnicas, pessoais e sociais necessárias à obtenção de uma qualificação escolar e profissional. A fim de concretizar os seus objetivos, no polo de adultos, o CEFC atua desde a alfabetização até ao nível secundário, disponibilizando modalidades de formação que englobam cursos de Educação e Formação de Adultos (EFA), Formações Modulares e outras ofertas formativas que não conferem qualificação.

A equipa pedagógica, constituída por gestores de formação, assistentes sociais, psicólogos e formadores, atua de acordo com as orientações metodológicas para a Educação e Formação de Adultos e de acordo com o modelo de intervenção do CEFC. Na planificação e organização das respostas formativas, assegura que cada curso tem subjacente um desenho curricular flexível centrado no adulto e nas suas experiências de vida, pois “os adultos aprendem quando são capazes de reorganizar e enriquecer o que já sabem” (Dominicé, 1990). Garante também uma organização a partir do cruzamento entre as várias áreas que o compõem, visto que “o domínio de competências específicas de cada uma delas enriquece e possibilita a aquisição de outras” (Alonso et al., 2002). Além destes pontos-chave na organização curricular, a equipa do CEFC integra um conjunto de metodologias fundamentais como a educação pela arte e pela cultura, a planificação participada de atividades integradoras e a codocência que, em conjunto, permitem alcançar a necessária diferenciação pedagógica. Desta forma, garante-se o respeito pelo ritmo e pelos processos de aprendizagem individuais, o acesso a novos níveis de literacia e a liberdade para viver plenamente em sociedade.

Os baixos níveis de literacia predominantes nos grupos sociais mais desfavorecidos (Ávila, 2008; Rothes, 2019) e a emergência da promoção de hábitos de leitura junto da população adulta norteiam a forma como a equipa do CEFC planifica a sua intervenção junto dos públicos em formação. Assim, nasceu um projeto alargado de promoção de hábitos de leitura e escrita que pretende promover a aproximação do adulto ao livro físico, virtual ou audiolivro, a obras literárias contemporâneas e clássicas; aproximar o adulto do prazer de ler e escrever; envolvê-lo na educação literária e na educação para a escrita, dada a importância de proporcionar leituras e escritas variadas que permitam desenvolver a criatividade, a expressão oral, a reflexão, a autonomia e uma cidadania mais competente.

Com este artigo, pretende-se efetuar um trajeto pelo CEFC, pelas salas de formação de diferentes módulos, turmas e níveis e apresentar as práticas formativas que se desenvolvem em torno do livro, da leitura e da escrita e que representam a dialética entre a didática e a promoção destes hábitos.

1. O INÍCIO DA LIBERDADE: ALFABETIZAÇÃO E B1

No percurso Alfabetizar e Integrar e no curso EFA B1 (4.º ano), o livro e a leitura marcam presença na Hora do Conto, uma das práticas mais apreciadas pelos formandos. Neste contexto, a obra literária surge pela voz das formadoras, de contadoras de histórias e mediadoras de leitura, por vezes, apenas com o objetivo de promover o prazer de ouvir ler, outras vezes, como ponto de partida para exercícios de carácter agregador das várias áreas que compõem os currículos dos cursos: Cidadania e Empregabilidade (CE), Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), Matemática para a Vida (MV) e Linguagem e Comunicação (LC).

As obras selecionadas para esta atividade são, maioritariamente, livros-álbum, porque dispõem de um conjunto de elementos essenciais para trabalhar com estes públicos, tais como a imagem (ilustrações apelativas e complementares); o texto simples; as temáticas transversais e significativas; e a possibilidade de espelhar um espaço que pode ser de todos, independentemente do ponto de partida de cada formando e do seu perfil linguístico.

Foram exploradas várias obras, entre elas, os livros Oficina de Corações, de Arturo Abad, e O Coração e a Garrafa, de Oliver Jeffers. A leitura e a dinamização de atividades práticas promoveram diálogos e a análise crítica sobre as questões que o texto suscitou. Estas atividades permitem também uma continuidade e um paralelismo, mais completo, com os momentos de aprendizagem formal da leitura e da escrita.

As evidências das aprendizagens que advêm desta atividade são enriquecidas no diálogo com a vida quotidiana e refletem-se nas sessões subsequentes. As leituras são levadas para casa, partilhadas com as famílias e devolvidas com maior profundidade, diferentes argumentos e novas interpretações. Os momentos seguintes são desenhados a partir das palavras lidas e das palavras criadas.

As experiências de leitura desenvolvidas por estes formandos ecoam pelo CEFC através de exposições (V. Figura 1) e sessões de leituras partilhadas com outras turmas.

Figura 1 – Trabalhos realizados pelos formandos de Alfabetizar e Integrar e B1

É no desenvolvimento de atividades como estas que reside a forte convicção de que é possível realizar sonhos. Os sonhos e esperanças da maior parte destes adultos, que se materializam em conseguir ler o nome de uma rua, conseguir escrever e ler uma lista de supermercado, ler o percurso de um autocarro. O analfabetismo é uma prisão. Um sentimento que tem de ser várias vezes desconstruído porque é fácil os formandos sentirem que não são capazes. Saber ler e escrever é inegavelmente uma ferramenta de liberdade.

Dar liberdade e autonomia a adultos que ainda fazem parte de uma percentagem elevada de analfabetos que herdámos de um tempo longo é um caminho que envolve tempo e persistência. É essencial, acima de tudo, uma equipa com o mesmo foco e uma atitude construtiva, reconhecendo cada indivíduo como singular, com a sua história, fragilidades e comprometimentos. O respeito por cada perfil implica um plano e um trabalho individualizado.

2.  A EXPRESSÃO DA LIBERDADE - CURSOS DE NÍVEL B2 E B3

Nos cursos de nível Básico (6.º e 9.º ano), escolares e tecnológicos, o objetivo de promover hábitos de leitura e escrita encontra espaço e tempo nos vários módulos que compõem os currículos.

No módulo transversal Aprender com Autonomia (AA), o gestor de formação assume o papel de mediador. Espera-se, ao assumir esta função, que crie sinergias entre as várias componentes do curso, na perspetiva holística que caracteriza o modelo pedagógico dos cursos. E também que promova uma metodologia participativa de trabalho que garanta a escuta ativa, a promoção da confiança e da empatia, a orientação do processo formativo, a reflexão e a consciencialização do formando e o necessário feedback sobre a progressão na formação (Canelas, 2008).

A gestão/mediação de formação sai reforçada quando se funde com a mediação de leitura, pois, em conjunto, disponibilizam técnicas e recursos que promovem o questionamento sistemático, o pensamento crítico e a reflexão. Como instrumento de dinâmicas de apresentação recorre-se ao livro-álbum Se eu fosse um livro, de André Letria e Jorge Letria. Após a leitura e a discussão da obra, o formando assume-se como personagem e constrói a sua própria reflexão escrita a partir da frase: "Se eu fosse um livro…". Neste ponto introduzem-se outras técnicas essenciais ao desenvolvimento da criatividade, privilegiando-se as expressões artísticas para a construção de páginas de apresentação. No final, sintetizam-se as características de todos e estas páginas reúnem-se, criando uma identidade de grupo (V. Figura 2). 

Figura 2 – Exposição das páginas de apresentação no placar "O que estamos a ler"

A abordagem da perceção é essencial para que os formandos identifiquem e compreendam a pluralidade de pontos de vista sobre o mesmo assunto. Neste sentido, aplicam-se exercícios de análise de imagens, seguidos do debate reflexivo sobre a possibilidade de um mesmo elemento suscitar diversas interpretações, e introduz-se a obra Todos eles Viram um Gato, de Brendan Wenzel. Este texto abre diversos caminhos e permite ao mediador fazer a ponte para o tema Aprender a Aprender e conduzir o adulto num processo de autoconhecimento. A exploração da obra pode desembocar na construção de uma janela de Johari (Ingham e Loft). Quando o grupo o permite, também se pode recorrer ao livro Um, nenhum, cem mil, de Luigi Pirandello, que explora em profundidade este tema.

A obra Histórias para contar consigo, de Margarida Fonseca Santos e Rita Vilela, e a obra de Jorge Bucay Deixa-me que te conte são instrumentos valiosos na mediação de conflitos pessoais e interpessoais e na orientação da gestão de emoções. Contribuem para refletir e reforçar a autoconfiança, identificar as resistências à aprendizagem e ultrapassá-las, compreender as necessidades que cada pessoa tem de se transformar a cada momento da sua vida. Estes livros são muito requisitados pelos formandos para leitura autónoma.

As obras referidas, sempre que se justifica, são trabalhadas a partir da perspetiva de outras áreas curriculares, como, por exemplo, LC. Neste módulo, a presença do livro, da leitura e da escrita é obviamente incontornável. O trabalho em torno da compreensão leitora operacionaliza-se a partir de exercícios como: antecipar o conteúdo da obra através do título e/ou imagens, pesquisar o significado de palavras para enriquecer o vocabulário; durante a leitura, analisar as categorias da narrativa, resumir, redigir textos de opinião, associar imagens a texto, pesquisar a biografia dos autores, dramatizar leituras em sala, selecionando excertos importantes, entre outros.

A promoção de hábitos de leitura alicerça-se no Círculo da Leitura, que constitui uma estratégia de encontro com os livros e os autores. Regularmente, promovem-se momentos de partilha de textos selecionados pelos formandos e pelos formadores de forma que cada um possa apresentar a sua interpretação do mundo e dos textos literários. Estimular o gosto pela leitura implica respeitar “o direito de ler não importa o quê” preconizado por Daniel Pennac (1999) na obra Como um romance. O Círculo da Leitura define-se precisamente como o espaço de liberdade para escolher a obra, independentemente do valor literário. De liberdade também para a abandonar e trocar, pois é importante que o formando constate e sinta que é protagonista da formação e que as suas expetativas e interesses são tidos em conta. O papel do formador consiste em disponibilizar referências literárias (socorrendo-se de instrumentos físicos ou digitais, como listas de livros ou o catálogo do Plano Nacional de Leitura) que inquietem o pensamento, que desassosseguem e façam com que o formando chegue ao Círculo da Leitura com mais perguntas do que respostas. A troca de experiências interpretativas, também interdisciplinares, estimulam a aprendizagem e o gosto pela leitura.

Outra área curricular rica em atividades em torno do livro é a de CE. Esta assenta em referenciais organizados em torno de disciplinas com impacto na resolução dos principais problemas da experiência humana. Trabalhar temas de Política e Economia, Saúde ou Ambiente exige uma fundamentação científica, por forma a promover o efetivo desenvolvimento de competências e, consequentemente, levar a uma mudança de atitudes. Nesta área, a leitura e a escrita contribuem para o desenvolvimento da literacia científica, que permite esbater mitos e preconceitos e desenvolver a capacidade de agir em situações dos diferentes contextos de vida. A análise de livros científicos e publicações igualmente credíveis e rigorosas confere o devido enquadramento histórico e social aos temas explorados com os formandos. Em termos práticos, por exemplo, a compreensão da Roda dos Alimentos ou da Dieta Mediterrânica e o domínio de noções básicas de Biologia, Física e Química tornam possível uma melhor leitura dos rótulos dos alimentos, provocando a reflexão, a mudança de mentalidades e comportamentos.

O livro recentemente editado Gosto, Logo Existo – redes sociais, jornalismo e um estranho vírus chamado fake news, de Isabel Meira e Bernardo P. Carvalho, mostra que a preocupação com a literacia e a educação para os media é uma emergência nas sociedades atuais. No âmbito dos temas abordados em cidadania, esta obra tem-se revelado um excelente instrumento de trabalho, pois confronta o formando com as suas práticas, provoca o questionamento sobre a realidade digital e potencia o espírito crítico.

Nos cursos EFA, «as metodologias de formação desenvolvem-se numa lógica de “atividades integradoras”, que convocam competências e saberes de múltiplas dimensões, que se interseccionam (sic) e entreajudam para resolver problemas em conjunto» (Rodrigues, 2009). No âmbito das comemorações do Ano Europeu do Património Cultural, a equipa pedagógica do curso EFA B3 de Manicura/Pedicura, em conjunto com os formandos, planificou uma atividade designada "O Património nas Nossas Mãos", cujo desafio final consistia em apresentar o tema numa exposição que incluísse trabalhos de nail art inspirados nos elementos gráficos do passado histórico e artístico do nosso país (V. Figura 3). Para a concretização deste projeto, nos diferentes módulos (de formação de base e tecnológicos), os formandos foram impelidos a pesquisar, a ler e a tratar dados de temas do âmbito da História da Arte, da Matemática e da Sociologia. Complementarmente, foram organizadas visitas à Igreja e Museu de São Roque, à Coleção CCB – O Modernismo (1900-1960), e um passeio para recolha fotográfica pelas ruas da Baixa Pombalina, do Campo das Cebolas ao Largo da Misericórdia, para descobrir na Lisboa do século XXI o passado multicultural. Neste processo, as práticas de leitura (interpretação e compreensão) assumem um papel predominante pelo seu carácter instrumental e transversal a todas as áreas curriculares.

Figura 3 – Exposição dos trabalhos de nail art - "O Património nas Nossas Mãos"

3. A LIBERDADE DE REESCREVER A SUA HISTÓRIA - NÍVEL SECUNDÁRIO

No nível secundário, a escrita, a leitura e a literatura assumem um papel central na gestão dos referenciais, principalmente de Cultura, Língua e Comunicação (CLC). O trabalho de diagnóstico sobre competências de leitura e escrita é o ponto de partida para a planificação partilhada das atividades a desenvolver, quer as restritas ao módulo quer as atividades integradoras. Desta forma, introduz-se uma dinâmica de entrevistas em pares sustentada num guião de questões pré-definidas que, além da apresentação ao grande grupo, através de uma breve incursão pelas experiências de vida, pretende recolher dados sobre os hábitos de leitura e escrita e iniciar um processo de reflexão sobre os bloqueios, as fragilidades e também as potencialidades que cada um apresenta. Um ponto de partida para aprender a pensar e, posteriormente, atingir a metacognição necessária no que concerne à compreensão e à dimensão metalinguística (Azevedo, 2000). As informações recolhidas e debatidas são essenciais para o início do processo de sensibilização para os benefícios da leitura e da escrita.

Com o intuito de promover a relação dos formandos com a leitura e permitir o contacto com diferentes obras, criam-se momentos que têm como finalidade apenas a fruição, o ler por prazer. Assim, o livro insinua-se na sala através de duas práticas. A primeira consiste na leitura de pequenos textos literários em voz alta por parte do formador no início de cada sessão, atividade que paulatinamente se vai alargando aos formandos; quando estes se sentem confiantes, promovem-se práticas de leitura em voz alta a duas vozes, em grupo, cantadas, sussurradas, gritadas, para que possam exercitar a entoação, o ritmo, a polifonia dos textos. A outra prática consiste na apresentação regular de livros significativos para o formador, com temáticas do interesse dos formandos, ou seja, procura-se apresentar o livro partindo da relação afetiva que se estabeleceu com o mesmo enquanto objeto e texto. Sempre que os formandos se mostram interessados no livro apresentado, este é disponibilizado para leitura autónoma. Posteriormente, são estes leitores que dinamizam sessões de motivação para o grupo.

Nas sessões de CLC, além do prazer da leitura, também se procura estimular o prazer da escrita, desmitificando a ideia de que esta é espontânea e automática quando, como refere Irene Fonseca (1994), “todos conhecemos por experiência própria (e mesmo os mais treinados) quanto é difícil escrever”. O ponto de partida é um exercício colaborativo de composição textual, que conta com a participação de todos (inclusive do formador enquanto modelo). Esta oficina, organizada de acordo com as fases do processo de escrita, planificação, textualização e revisão (Azevedo, 2000), pretende propiciar o ambiente adequado para que o formando se sinta confiante na realização do exercício e para que haja troca de experiências, de formas de pensar e de questionamentos.

A partir dos primeiros exercícios textuais, desenvolve-se uma dinâmica que consiste em preparar um diário multimodal, inspirado nos diários gráficos de Eduardo Salavisa (V. Figura 4). A atividade decorre em articulação com os módulos tecnológicos de animação e expressão. Neste contexto, introduzem-se as técnicas de colagem e os movimentos artísticos do início do século XX, com referência a Pablo Picasso, Georges Braque e Matisse. O diário reveste-se de liberdade de escrita e ilustração sobre as temáticas do curso e estabelece um diálogo com as leituras efetuadas e a prática dos diferentes géneros textuais. Consiste numa viagem pelo curso que, no final, se revela um documento tradutor da evolução do processo de escrita de cada um.

Figura 4 – Exemplos de Diários

Em regime de codocência, surgem as oficinas de escrita criativa, orientadas por escritoras, mediadoras de leitura e contadoras de histórias referenciadas pela equipa do PNL2027. Nestas sessões colocam-se diversos desafios, sempre em consonância com os interesses dos formandos e os temas em desenvolvimento. As mediadoras/escritoras promovem a escrita de diferentes géneros textuais com recurso a diversas técnicas e criam o ambiente propício para gerar uma relação afetiva com a escrita. Os textos produzidos são sempre partilhados, lidos em voz alta. A inclusão destas oficinas nos currículos dos cursos reforça e inova as estratégias pedagógicas de promoção de escrita já existentes, contribuindo para retirar o formando da sua zona de conforto e estimulando-o a apresentar soluções inovadoras para as situações-problema com que é confrontado. Recentemente, no âmbito de uma atividade integradora, os formandos foram desafiados a recontar e recriar as suas experiências formativas desenvolvidas numa visita à exposição O Mar É a Nossa Terra, numa história infantojuvenil, convocando os conhecimentos culturais, literários e artísticos para interpretar as aprendizagens realizadas (V. Figura 5). De facto, através destes exercícios, o reforço das competências de literacia alia-se ao desenvolvimento de outras competências essenciais, como a criatividade, o pensamento crítico e a resolução de problemas, contribuindo para a preparação da integração dos formandos no mercado de trabalho e na sociedade.

Figura 5 – Livros construídos pelas formandas do curso de Técnico(a) de Ação Educativa a partir da interpretação da exposição O Mar é a Nossa Terra

No curso de Técnico(a) de Ação Educativa (TAE), as histórias infantojuvenis constituem o tronco comum de várias áreas de competência-chave, e o inglês alia-se a este propósito, para capacitar indivíduos em ferramentas linguísticas, abrindo portas à integração em diferentes contextos. A expressão artística, como metodologia subjacente ao ensino da língua inglesa, estimula a aprendizagem, potenciando as diversas formas de comunicação. Destaca-se, como exemplo, a criação de uma short story a partir de pinturas em acrílico. A atividade foi desencadeada a partir do visionamento do filme Big Eyes de Tim Burton e, posteriormente, da leitura da biografia da pintora americana Margaret Keane. Os formandos exprimiram as suas emoções em telas, organizaram uma sequência e criaram uma narrativa em inglês e português. O trabalho foi apresentado a toda a comunidade do CEFC, através da organização de uma exposição das pinturas e dos textos com vários “adereços” (folhas secas, areia, conchas e sons) que ajudaram a transportar os visitantes numa viagem através dos sentidos (V. Figura 6).

Figura 6 – Exposição Once upon a time

Enquanto profissionais, os técnicos de ação educativa têm o compromisso de serem também mediadores da leitura, contribuindo a formação para a sua futura prática pedagógica. Assim, criam-se oportunidades de contacto com os livros, revelando diferentes autores e formas de escrita, valorizando cada passo neste percurso, também, de formação pessoal. E para que futuramente possam apresentar às crianças livros adequados a cada faixa etária e com qualidade, importa confrontá-los com exemplos menos bons, nos quais se escondem mensagens pouco éticas ou onde o texto e a imagem não se articulam ou, ainda, onde o conteúdo e a forma não convergem para o mesmo público. Pensar mais profundamente como sentimos cada livro vai capacitando estes formandos para serem leitores com espírito crítico, capazes de fazerem escolhas e de as fundamentarem. No entanto, esta consciência crítica tem a sua génese também na “experiência de vida e de relação com os outros” (Ornelas, 2008) e constitui um caminho que vão desbravando, usando as ferramentas adquiridas ao longo do seu percurso de formação e que são fruto não só do entrecruzar das diferentes áreas de conteúdo curricular, mas também de diferentes interações pessoais.

O exercício da leitura provoca os inevitáveis encontros com o passado e com as memórias da infância. Ao longo do curso, os módulos tecnológicos vão reforçando a importância de cada fase de desenvolvimento das crianças e da importância do papel do adulto neste processo de crescimento e consolidação de competências. E mais uma vez, também enquanto educadores, o passado volta, lembrando imperfeições, inseguranças, mas também superação e conquistas. São muitas vezes as histórias com que se cruzam que lhes permitem reescreverem a sua própria história, entenderem o seu percurso e, corajosamente, assumirem escrever novos capítulos da sua vida.

Contar histórias, mesmo em contexto de sala, possibilita treinar o manuseamento do livro, corrigir a dicção, desenvolver a consciência fonológica e aperfeiçoar a comunicação com os outros. A dinâmica vocal torna a história mais viva e a capacidade de transmitir emoções cresce à medida que a autoconfiança lhes reforça o gosto de fazer viajar os seus ouvintes nesta vivência comum de partilhar leituras.

4. A LIBERDADE DE PARTILHAR - PROJETO EXPERIÊNCIAS DE LEITURA E ESCRITA

As atividades apresentadas são pequenos retratos do trabalho que se realiza no CEFC em torno da didática e da promoção de hábitos de leitura e escrita que integram um trabalho maior. O projeto Experiências de Leitura e Escrita surge como um elemento agregador de toda a comunidade educativa, convidando formandos e colaboradores a encontrarem-se como escritores e leitores e a descobrirem o prazer proporcionado por estas atividades. Neste sentido, a utilização do livro-álbum, um instrumento transversal de respostas múltiplas, constitui uma estratégia pedagógica adequada a diferentes turmas, desde a alfabetização ao nível secundário, bem como a todos os colaboradores. Cada adulto, de acordo com o seu conhecimento do mundo, tem a liberdade de interpretar e enriquecer a leitura com os seus contributos.

Como foi descrito, cada turma integra um conjunto de práticas regulares em torno do livro e da escrita. Pretende-se que cada uma parta do seu projeto e se encontre com os projetos de outras turmas, numa interação integrada em torno da literatura e da escrita. Os formandos são convidados a partilhar os seus trabalhos a partir de atividades como O que estamos a ler, Árvore da Leitura (V. Figura 7), exposições temáticas e comemoração de dias alusivos à leitura e à escrita.

Figura 7 – Árvore da Leitura

No atual contexto pandémico, este projeto ficou condicionado pela impossibilidade de interagirmos entre salas. Focados na urgência de dar continuidade a este trabalho, recriámos novas formas de partilha, reforçando a ideia de que haverá sempre Leituras que nos Ligam. Este foi o mote com que “viajámos” pelo CEFC, de sala em sala, levando, num saco de pano (com o logótipo e a frase da nossa convicção), o livro Eu Espero de Davide Cali e Serge Bloch, que aborda os diferentes momentos e emoções que se experimentam ao longo da vida. O valor metafórico do “fio da vida” presente no livro mobilizou os formandos a manifestarem os seus desejos e expectativas, escrevendo o que cada um espera e inspirando também a participação de toda a comunidade educativa (V. Figura 8). A vivência desta dinâmica causou impacto na comunicação interna da comunidade, onde cada um se sentiu parte integrante e significativa e, tal como refere Ornelas, (2008), desenvolveu um maior sentimento de pertença. A mobilização de formandos, formadores, técnicos e demais colaboradores constituiu um processo colaborativo em  que se reforçaram sentimentos de identidade coletiva e, simultaneamente, respeito e compreensão pela diversidade.

Figura 8 – Materiais da dinâmica Leituras que nos Ligam

CONCLUSÃO

Este percurso através das diferentes práticas desenvolvidas no CEFC devolve o eco das mudanças operadas nas vidas dos formandos pela observação de comportamentos que evidenciam a aquisição e o desenvolvimento de competências de leitura e escrita. Observa-se a crescente habilidade com que manuseiam o livro, mostrando-o, contando histórias e desencadeando emoções, ao mesmo tempo que reconhecem os autores que lhes foram apresentados e relacionam obras e diferentes formas literárias. Os formandos revelam um interesse emergente em explorarem novos livros e reconhecem ter influência na mobilização de práticas de leitura junto de familiares e amigos. Liderar dinâmicas de motivação para a leitura implica transmitir o gosto de folhear livros e de descobrir as palavras que se escondem entre as diversas ilustrações, mas centra-se sobretudo no modelo de leitor que somos. Também em relação à escrita se observa uma evolução na confiança com que produzem os seus textos, revelando uma maior organização de pensamento através da expressão de aprendizagens, ideias, sentimentos e reflexões sobre as experiências vividas. Este é um percurso conjunto de formadores e formandos, tal como diz Margarida Fonseca Santos num dos seus contos, “fazendo da esperança de cada um a nossa prioridade”.

A elevação dos níveis de literacia contribui para o desenvolvimento da consciência crítica dos formandos, o que lhes permite analisar o mundo, constatar a existência de várias escolhas possíveis e redefinir o futuro de acordo com as suas preferências. Considera-se que as estratégias participativas adotadas pelos formadores contribuem para o processo de empowerment através do qual os formandos assumem o controlo das suas próprias vidas (Rappaport,1987). Este conceito relaciona competências individuais e sociais, permitindo estabelecer objetivos e definir as estratégias para os alcançar, numa dinâmica de liberdade.

O processo de escrita deste artigo revelou-se um importante exercício de reflexão e análise para a equipa pedagógica, abrindo caminho à reformulação permanente que a formação de adultos exige. Esta estratégia de reflexão-em-ação revelou-se fundamental para criar um sistema de comunicação mais aberto, facilitando a partilha e rentabilizando os recursos específicos de cada participante. As vantagens desta metodologia relacionam-se com a possibilidade de implementar mudanças no contexto real - que é, simultaneamente, o nosso objeto de estudo - e com o processo de melhoria contínua.

REFERÊNCIAS

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Ávila, P. (2009). A Literacia dos adultos: Competências-chave na sociedade do conhecimento. Celta.

Azevedo, F. (2000). Ensinar e aprender a escrever através e para além do erro. Porto Editora.

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