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Ecologia
Ecologia
Joana Bértholo

ISBN: 978-972-21-2937-4

Edição: maio de 2018

Editor: Caminho

N.º de páginas: 499

Maaaãe…?
- Diz, Candela.
- Ó mãe, se o dinheiro falasse…
- O dinheiro não fala, querida, as coisas não falam.
- Sim, eu sei! Mas se! Se o dinheiro pudesse falar.
- Ok…
- … O que é que tu achas que diria…?”
[...] 
Mãe, as palavras têm prazo de validade?
-Que eu saiba não, ainda não.
- Em breve vão ter, não vão? Porque as palavras agora são coisas e a maioria das coisas tem um prazo de validade. […]
-Ó mãe, e o que vamos fazer quando uma palavra expirar?
-Sei lá. Terás de comprar uma mais recente.
-Ah…
Lúcia senta-se e reabre o seu livro.
- E o dinheiro, mãe? Não tem prazo de validade?
                                           Joana Bértholo, Ecologia

Para nós, leitores, cada livro de Joana Bértholo é uma surpresa, das inesquecíveis. A sua escrita percorre diferentes géneros: romances, livros infantis, peças de teatro, entre outros.

Ecologia é um livro reflexivo, incómodo, complexo, assustador, questionador, provocador e inovador.  Mas também irónico, corrosivo, amargo e divertido. Numa só palavra: brilhante! As histórias cruzadas, as personagens dispersas mas entrelaçadas, a mescla de estilos narrativos e diferentes artes, a reflexão sobre os limites da linguagem e as questões da incomunicabilidade fazem com que este livro se torne numa experiência ímpar de leitura.  São partilhadas com o leitor citações, informações, segredos escondidos em códigos QR que vão surgindo ao longo das páginas, induzindo uma oscilação nos ritmos de leitura e afirmando formas de comunicar distintas.

É de palavras que se fala em Ecologia.  Palavras que ecoam num novo tipo de sociedade – de cariz económico, onde tudo se compra e vende, até as palavras. Terão as palavras prazo de validade? Conseguirá o dinheiro comprar palavras? Será possível a “privatização da linguagem”? Serão as palavras privatizáveis?

A organização do livro acompanha a privatização da linguagem, a qual decorre em três vagas.  Na primeira – que te custa dizer alguma coisa? – apenas algumas palavras são privatizadas. Na segunda vaga - a ascensão dos Fala-Barato – paga-se por tudo o que se diz.  Torna-se visível que “Cada palavra tem um sentido e um peso diferentes, e por isso o valor de cada uma delas varia (…)”. Agora, mais do que nunca é preciso estar atento ao que se diz e como se diz. Por último, na terceira vaga - a carne da linguagem – apresenta-se ao leitor a hipótese de o corpo ser, ele próprio, um ecrã e a linguagem surge como uma “digitalização da própria palavra”.

São várias as personagens que habitam nas páginas de Ecologia com as quais facilmente nos identificamos, porque vivemos situações idênticas, convivemos com as mesmas dúvidas, colocamos as mesmas questões ou, simplesmente, porque há acontecimentos que nos são familiares ou coincidentes com os tempos que vivemos. Sofremos com diferentes ameaças: nucleares, ambientais, tecnológicas, economicistas, informacionais, entre muitas outras. Sentimos que a liberdade nos escapa, que o mundo dos mercados e do capitalismo começa a ter uma presença mais assídua nas nossas vidas, e que as redes sociais ampliam os desejos do ter em detrimento do ser, espelhando solidão, individualismo e níveis de ansiedade elevadíssimos.  Temos medo. Vivemos uma ditadura do medo. Precisamos de medo. Será que precisamos mesmo? Será que o mundo está desgovernado? Caminhamos para um caos?  Será este o nosso verdadeiro mundo?

As vidas das personagens vão respondendo, ou pelo menos tentando responder, a estas e outras questões. A narrativa apresenta-nos mulheres fortes e interventivas. Darla Walsh, diretora-executiva de uma multinacional, jovem, perspicaz, eloquente e rigorosa, pensa ser necessário normalizar o uso da linguagem. Ana, a Mulher-Eco, cuja profissão consiste em "ecoar", repetindo as afirmações de Darla, possibilitando-lhe ouvir o seu discurso de fora, para melhor o apreciar, medir, analisar e escutar. A escuta. Esse ato tão importante nas sociedades e nas relações humanas e, atualmente, tão esquecido. Carolina, a jornalista, que gosta de retiros de silêncio na esperança de superar a incomunicabilidade com Tápio, um conceituado fotógrafo de guerra que se depara com a dificuldade de descrever o horror vivido e observado.

Vicente, Jeff, Nelson, Pedro ou Mablevi, entre outros. Cada um deles, à sua maneira, tenta viver e adaptar-se às mudanças no mundo. Não é isso que todos nós fazemos? Lúcia e Pablo, pais adotivos de Candela, um casal como tantos que conhecemos, a superar a rotina dos dias e a tentar manter um casamento e educar uma filha. Candela, a menina encantadora, perguntadora, obsessiva com as palavras, curiosa com as “línguas órfãos”, como, por exemplo o Basco, o Hatti ou o Pirarrã do Brasil. A menina interrogadora possibilita ao leitor recordar a maravilha que é o mundo da linguagem: os sinónimos e antónimos, a polissemia, as associações possíveis, os jogos da língua e as diferentes formas de nomear, descrever ou interrogar este mundo. Afinal, qual o poder das palavras?

Ecologia é um livro que nasce de muitos outros livros. Ecologia é um romance (será mesmo um romance?) singular, inovador, e primorosamente desenhado. Exibe uma estrutura completamente diferente das habituais. O fio condutor, sempre presente, mesmo quando ao leitor parece inexistente, revela vários cenários, diferentes vidas, olhares distintos que se entrelaçam, criando uma narrativa una. O poder totalitário, a inovação tecnológica, os sonhos, os medos, a humanidade, os dilemas surgem como assuntos de reflexão, mas é a palavra que desempenha o papel principal. 

É com palavras que nos questionamos. Sabemos que as perguntas estimulam o ato de pensar, fomentam o espírito crítico, ajudam à construção de argumentos sólidos, aclaram a realidade e aguçam a curiosidade. Ao longo das quase quinhentas páginas do livro, recuperamos velhas perguntas, descobrimos matéria para novos questionamentos, questionamo-nos vezes sem conta. Aqui, habitam perguntas. Muitas. Imensas. Assinalamos algumas: "Como se diz uma palavra impronunciável? “, "Sentimos emoções para as quais não temos nome? ", “O mundo ia ser diferente se eu aprendesse palavras diferentes para as mesmas coisas?" …

 

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