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Boas conversas. A leitura partilhada como área de investigação
Íris Susana Pires Pereira

Apenas através da reflexão nos apropriamos do que lemos,
do mesmo modo que os alimentos não nos nutrem senão através da digestão.
Se lemos continuamente e sem pensar no conteúdo da leitura,
esta não ganha raízes e a maior parte das vezes perde-se. 
Arthur Schopenhauer, Parerga e Paralipómena II
(Sobre leitura e livros, §291, tradução minha)

RESUMO

Este texto discute a realização da leitura partilhada de textos narrativos com crianças que ainda não são leitores autónomos, apresentando-a como área de investigação de interesse para a revista Entreler. O artigo está organizado em dois momentos. No primeiro, começo por discutir duas perspetivas sobre os efeitos linguísticos da leitura partilhada, uma centrada no desenvolvimento da linguagem oral e a outra no da linguagem especializada, destacando o papel da conversa sobre o texto lido nesse desenvolvimento. Num segundo momento, trago para a discussão a exigência (para os adultos) da construção de boas conversas, que, na minha opinião, justifica a realização de investigação que produza saber sobre essa prática.

ABSTRACT

This text discusses the shared reading of narrative texts with children who are not yet autonomous readers, presenting it as an area of research of interest to Entreler. The article is organized in two moments. In the first, I begin by discussing two perspectives on the linguistic effects of shared reading, one centered on the development of oral language and the other on specialized language, highlighting the role of conversation about the text read in this development. In a second step, I bring to the discussion the requirement (for adults) to build good conversations, which, in my opinion, justifies the conduct of research that produces knowledge about this practice.

PALAVRAS-CHAVE

leitura partilhada, linguagem básica, linguagem especializada, interação adulto-criança, conversa

NOTA CURRICULAR DOS AUTORES

Íris Susana Pires Pereira é professora auxiliar no Instituto da Educação da Universidade do Minho desde 2008. É membro do Centro de Investigação em Educação, onde coordena o Grupo de Investigação Tecnologias, Multiliteracias e Currículo. É atualmente diretora-adjunta da Revista Portuguesa de Educação. Investiga a didática da língua em contexto educativo, a leitura digital multimodal e formação inicial e contínua de educadores de infância e de professores do 1.º Ciclo da Educação Básica.

Introdução

Este artigo discute a realização de práticas de leitura partilhada com crianças, procurando apresentar as boas conversas construídas nesses contextos como objeto de investigação e de disseminação relevante para uma revista como a Entreler.

A leitura partilhada é uma forma de leitura ‘diferente da tradicional’ (Gormley e Ruhl, 2005) na medida em que o adulto não se limita a ler para as crianças, procurando, antes, ler com as crianças, conversando antes de iniciar a leitura em voz alta, interrompendo a leitura sempre que relevante, e continuando depois de a leitura em voz alta ter terminado, dando também vez e voz às perguntas e aos comentários dos interlocutores, desse modo fazendo de ambos – adultos e crianças – agentes interativos da construção da situação de leitura (Sénéchal, 2017).

Neste artigo, discuto as práticas de leitura partilhada de textos narrativos com crianças em idade pré-escolar, de modo a assim destacar os contornos e efeitos específicos da prática da conversa sobre esses textos. Na verdade, fazer sentido dos textos narrativos é um motor poderoso do desenvolvimento mental das crianças. Através das histórias, as crianças representam para si pequenas parcelas do mundo que lhes permitem a construção de saberes de diferente natureza. Organizando-se convencionalmente em orientação, problema, reação, resolução e final (Martin e Rose, 2005), os textos narrativos treinam o pensamento narrativo, lógico e coerente. O estabelecimento desses elos causais entre eventos temporalmente situados é fundamental para a perceção da identidade e do sentido da experiência individual ao longo da vida (Bruner, 2006; Garvis e Pramling, 2017; Pompert, 2012; Pramling, 2017). Acresce que, ao colocarem os ouvintes/leitores como testemunhas dos dramas das personagens e da forma como resolvem as complicações, os textos narrativos configuram-se como suporte do desenvolvimento da capacidade de gestão de problemas e da construção da teoria da mente e, em particular, da empatia (Bandura, 1986; Pompert, 2012; Pramling, 2017; Baron-Cohen, 2995; Volpi, 2011). Estas são competências fundamentais na construção de aprendizagens pessoais e experienciais, que são alimentadas pela leitura partilhada dos textos narrativos com as crianças (Pompert, 2012; Pramling, 2017).

Uma outra área de desenvolvimento mental das crianças não leitoras fortemente associada à prática de leitura partilhada dos textos narrativos é a relacionada com as competências linguísticas. A investigação sugere efeitos da leitura partilhada ao nível da motivação para a leitura, assim como da construção de conhecimentos emergentes sobre a linguagem escrita e, ainda que em menor medida, do desenvolvimento da consciência fonológica (Sénéchal, 2017). Contudo, mostra de um modo mais consistente que as boas conversas sobre um texto narrativo aceleram o desenvolvimento da linguagem das crianças.  É nesta dimensão que me detenho neste artigo.

Na secção seguinte, discuto duas perspetivas que considero complementares sobre os efeitos linguísticos da leitura partilhada, uma centrada no desenvolvimento da linguagem oral, a outra no da linguagem especializada, terminando com a discussão do papel da interação como denominador comum a ambas perspetivas. Depois, trago para a discussão a exigência (para os adultos) da construção de boas conversas, o que, na minha opinião, justifica a realização de investigação que produza saber sobre essa prática.

1. Boas conversas sobre textos narrativos lidos com as crianças em idade pré-escolar: perspetivas sobre desenvolvimentos linguísticos

O meu entendimento dos efeitos linguísticos da prática da leitura partilhada com crianças em idade pré-escolar é assumidamente sincrético, por reunir contributos de diferentes perspetivas teóricas e estudos empíricos. Destaco resumidamente duas dessas perspetivas. A primeira está claramente situada na esfera dos estudos psicolinguísticos, sendo a outra marcadamente influenciada por entendimentos socioculturais e sociolinguísticos da linguagem. Considero-as complementares, iluminando a existência do que para mim são dois tipos de efeitos linguísticos da leitura partilhada nas crianças pequenas. Une estas perspetivas um claro denominador comum, o que reforça a sua consideração conjunta.

1.1 Desenvolvimento da linguagem oral

São inúmeros os estudos da esfera psicolinguística que correlacionam a leitura partilhada com a intensificação do desenvolvimento da linguagem oral das crianças (Noble, Sala, Peter et al., 2919). A investigação destaca, por exemplo, os efeitos ao nível do aumento e da complexificação do vocabulário (Sénéchal, 2017; Whitehurst et al., 1988; Zevenberger, Whitehurst e Zevenberger, 2003) e do desenvolvimento da compreensão e da qualidade da produção de texto narrativo (Grolig, Cohrds, Tiffin-Richards e Schoeder, 2019; Marjanovič-Umek, Hacin e Fekonja, 2019; Lever e Sénechal, 2011; Sénéchal, 2017). Estas são dimensões da linguagem oral que a investigação tem mostrado serem particularmente importantes para a futura aprendizagem da linguagem escrita (Pace, Alper, Burchinal et al., 2018; Sénéchal, 2017).

Muitos destes estudos recorrem à ‘leitura dialogada’, uma forma de leitura partilhada concetualizada por Whitehurst e colaboradores (Whitehurst et al., 1988), como técnica de construção de leitura partilhada com as crianças. Sustenta-se em duas sequências de estratégias de construção de diálogo, cujos acrónimos são PEER e CROWD (Zevenberger e Whitehurst, 2003). PEER designa um conjunto de cinco indicações genéricas para a construção das intervenções do adulto responsável por iniciar a conversa e manter a atenção conjunta com a criança. Estipula a necessidade de (a) (Prompt) Incitar a criança a nomear objetos e a falar sobre a história; (b) (Evaluate) Corrigir (de forma construtiva, não ostensiva) a informação dada pela criança e valorizar as suas respostas; (c) (Expand) Expandir as respostas da criança repetindo, parafraseando, reformulando, simplificando ou acrescentando informação, mas também exemplificando ou partilhando; (d) (Repeat) Repetir (ou pedir à criança que repita) os enunciados expandidos de modo a assegurar que a criança aprende com a expansão.

CROWD designa cinco estratégias específicas de incitamento do discurso das crianças (cf. a primeira alínea de PEER). Indica a possibilidade de solicitar que a criança (a) (Completion) Complete informação; (b) (Recall) Recorde aspetos específicos da narrativa; (c) (Open-ended) Use as suas próprias palavras para falar da narrativa; (d) (Wh-questions) Responda a perguntas de tipo quem, o quê, quando, porquê, incluindo perguntas sobre o significado de palavras desconhecidas; (e) (Distancing) Estabeleça relações entre a narrativa e a sua experiência de vida.

As técnicas de leitura dialogada não foram desenvolvidas nem são implementadas e investigadas como teste para avaliar o que a criança compreendeu ou se compreendeu bem o texto que foi lido. Pelo contrário, a leitura dialogada assume-se como um contexto de apoio ao desenvolvimento da linguagem oral. Na literatura sobre este assunto, o principal objetivo perseguido é o de permitir que a criança, no final do diálogo, seja capaz de narrar a história que, entretanto, compreendeu e representou mentalmente para si (Whitehurst et al., 1988). A comunicação que, através de PEER e de CROWD, se desenha para a promoção da linguagem oral fundamenta-se num conjunto de pressupostos teóricos que a investigação tem, na verdade, relacionado com a estimulação social do desenvolvimento linguístico oral (Zevenberger, Whitehurst, 2003; Noble et al., 2019).

Essencial nesse fundamento é o reconhecimento do fundamento biológico-social do desenvolvimento da linguagem. O desenvolvimento da linguagem oral é suportado por uma base biológica (Lenneberg, 1967; Chomsky, 1980), cujo desenvolvimento obedece aos mesmos determinantes que qualquer outra capacidade cognitiva ou função fisiológica, entre os quais é essencial a disponibilidade de estimulação ambiental abundante. No caso da linguagem, esse estímulo é constituído pelo sistema gramatical da sua comunidade de fala e que é partilhado com a criança através da interação social (Bruner, 1986). A investigação tem mostrado inequivocamente que é a prática comunicativa com outros, mais do que a exposição passiva a estímulos linguisticamente ricos, que possui um impacto causal no desenvolvimento da linguagem, ao mesmo nível que os contributos linguísticos internos ao organismo (Kuhl, 2011). Ambos fatores – biológico e social – são hereditariamente transmitidos, pelo que a ausência de um ou de outro torna impossível o processo de (re)construção mental do qual a criança acaba por ser agente ativo e principal responsável (Balari, Lorenzo e Sultan, 2020). Em última instância, a diferença nessa interação explica as diferenças na linguagem oral de crianças que, tendo começado o jogo do desenvolvimento da linguagem com as mesmas circunstâncias biológicas, mostram diferentes desenvolvimentos num mesmo momento de vida (por exemplo, quando têm 5 anos de idade). A investigação tem mostrado que a diferença na linguagem oral das crianças se tende a acentuar durante o período que precede a entrada na escola e que essa diferença se relaciona com o perfil sociocultural das famílias, do que se infere a existência de uma diferença na qualidade e quantidade de interação linguística em que as crianças são envolvidas nesses diferentes contextos familiares (Pace et al., 2018). A investigação tem também revelado que os efeitos da prática da leitura partilhada sobre o desenvolvimento da linguagem oral são especialmente evidentes entre crianças provenientes de contextos familiares mais desfavorecidos (Zevenberger e Whitehurst, 2003).

A base biológica que sustenta o desenvolvimento da linguagem tem na infância o seu período crítico de funcionamento (Lenneberg, 1967), o que desde logo destaca a importância da prática social da leitura partilhada no seu desenvolvimento. Este facto, que considero sumamente relevante, tende a ser escamoteado nas justificações da relevância da construção de práticas linguísticas interativas ricas como as perseguidas através da realização da leitura dialógica. Em vez disso, tende a ser apenas destacado o facto, igualmente relevante, de a leitura partilhada ser intencionalmente concebida como andaime social de suporte formal ao desenvolvimento da linguagem oral (Bruner, 1986; Vygotsky, 1978; Zevenberger e Whitehurst, 2003). A investigação mostra que, nesses diálogos, os adultos dirigem às crianças um discurso lexicalmente rico e sintaticamente elaborado de forma contingente e responsiva (portanto, desafiando o conhecimento em desenvolvimento), permitindo-lhes também uma prática linguística interventiva, em que de facto as crianças também são chamadas a serem interlocutores (para uma revisão de estudos específicos, consulte-se Noble et al., 2019). Estando implicado um complexo processo de reconstrução mental, a investigação também aponta para a necessidade de (muito) tempo para que a linguagem se desenvolva no contexto dessas práticas de leitura (Noble et al., 2019). A importância da qualidade dos diálogos para a promoção do desenvolvimento da linguagem é bem evidenciada nos efeitos linguísticos diferenciados resultantes de diferentes formas da interação construída pelos adultos, assim como na aceleração do desenvolvimento da linguagem oral das crianças provenientes de contextos socioculturais mais desfavorecidos, nos quais, aparentemente, o estímulo social é menos potente (Sénéchal, 2017).

1.2 A ontogénese da linguagem especializada

Vários estudos realizados sobre os efeitos das boas conversas correlacionam diretamente as práticas de leitura partilhada realizadas em idade pré-escolar com o êxito escolar das crianças, em particular na compreensão de textos narrativos lidos no 1.º ciclo do ensino básico (Whitehurst et al., 1988). No quadro teórico psicolinguístico, este efeito é interpretado como sinal de que é o desenvolvimento da linguagem oral em idades pré-escolares que determina esses êxitos escolares futuros.

Esta interpretação tem vindo a ser questionada por estudos que apontam para a necessidade de convocar outro tipo de explicações. O estudo longitudinal de Wells (1987) foi um dos pioneiros nesse sentido. O seu estudo mostrou que a competência linguística oral estava bem distribuída entre a maioria das crianças que estudou, que era capaz de lidar com as exigências de escuta e de expressão oral da sala de aula. Todavia, o êxito escolar dessa amostra de crianças não foi igual, tendo Wells verificado que esse sucesso foi muito mais diretamente influenciado pelo grau de familiarização dessas crianças com o tipo de capacidades linguísticas especializadas valorizadas em contexto escolar.

A referência a este estudo serve a introdução da outra lente teórica que, do meu ponto de vista, permite um entendimento complementar da importância da leitura partilhada de narrativas com as crianças em idade pré-escolar. Diferentemente dos estudos antes revistos, esta perspetiva relaciona mais fortemente sociedade, linguagem e desenvolvimento mental, aí sustentando um entendimento sociocultural e sociolinguístico da leitura partilhada.

Uma das principais assunções teóricas desta abordagem é a referente ao papel mediador da linguagem na interiorização da cultura que é valorizada pela - e requerida para a integração das crianças numa determinada - comunidade social (Vygotsky, 1995; Hasan, 2001, 2002).  Assumindo a visão ‘sociogenética’ do conhecimento humano de Vygotsky, considera-se que os usos sociais da linguagem são mediadores da configuração de disposições mentais especializadas para fazer sentido e aprender.

Uma outra assunção fundamental nesta perspetiva, esta de caráter sociolinguístico, é a referente à diferença entre as formas de linguagem vernacular e as formas de linguagem especializada. A primeira carateriza as formas da linguagem usada para comunicar nos contextos informais, enquanto a segunda designa as formas de linguagem que servem para representar o conhecimento culturalmente relevante, como, por exemplo, os conceitos que constituem o conhecimento escolar (Haliday, 1993; Hasan, 2001, 2002; Pereira, 2008, 2014; Scheleppregel, 2003; Vygotsky, 1995). Com efeito, nesta perspetiva assume-se que os significados que um grupo social foi construindo sobre o mundo – a cultura – são representados em formas de linguagem específicas. Essas formas são vistas como desenvolvimentos históricos da linguagem vernacular (Halliday e Martin, 1993), de que se distingue em variadíssimas dimensões como, por exemplo, a sua natureza descontextualizada, virtual, abstrata e múltipla (Pereira, 2014). Neste contexto, as linguagens especializadas constituem uma espécie de ‘segundo ciclo de desenvolvimento linguístico’, necessário para que as crianças possam construir os sentidos nelas representados (para aprender cultura) (Halliday, 1993).

Por fim, assume-se, ainda, que a apropriação interna destas linguagens especializadas tem de ser realizada de forma socialmente mediada, tendo as investigações revelado que algumas crianças, normalmente provenientes de famílias sociocultural e economicamente favorecidas, são, de facto, socializadas nesses modos de significar especializados durante as interações diárias que mantêm nos seus contextos familiares antes de iniciarem a escolarização (Hasan, 2001, 2002; Heath, 1983; Wells, 1987; Williams, 2001). Segundo Hasan (2001), é essa história de implicação precoce na atividade semiótica que facilita os encontros dessas crianças com o discurso da escola, preparando-as para aprender essa linguagem e a cultura especializada que nela se representa. A não familiarização com a forma especializada de usar a linguagem condiciona fortemente a participação das crianças no discurso especializado de produção de conhecimento escolar (Schleppegrell, 2004).

Os textos narrativos literários são um exemplo claro da noção de linguagem especializada que se desenvolveu ao longo dos tempos para representar determinados significados em formas linguísticas especializadas. Os textos narrativos mostram a experiência humana situada num espaço e num tempo que é disjunto do da sua enunciação, tendo os seus significados profundos um caráter universal por serem potencialmente formativos da vida de todas as pessoas. A importância que é culturalmente reconhecida à leitura dos textos narrativos literários tem justamente que ver com o importante papel que desempenham na mediação da reconstrução individual dos significados aí representados.

Nesta perspetiva, as boas conversas sobre os textos narrativos lidos com as crianças que ainda não iniciaram a aprendizagem escolar são determinantes da ontogénese do discurso especializado (Hasan, 2001). Socializam as crianças na utilização de formas de significar especializadas, desse modo favorecendo a construção de disposições mentais culturalmente valorizadas e um tipo de aprendizagem implícita dessa linguagem.

1.3 A interação verbal como denominador comum

Sou consciente de que a distinção entre desenvolvimento de linguagem básica e especializada não é sempre nítida quando se analisam os dois tipos de estudos. Por exemplo, é frequente encontrar nas investigações recentes de tipo psicolinguístico um uso das técnicas CROWD de forma claramente mais situada nas caraterísticas e nos significados dos textos narrativos, como, por exemplo, através da utilização de perguntas específicas sobre sequência temporal e causal da narrativa, assim como sobre as motivações e estados mentais das personagens (Grolig et al., 2019). Além disso, percebe-se, nos estudos mais recentes, uma maior preocupação com a solicitação de informação de tipo literal e inferencial (Marjanovič-Umek, Hacin e Fekonja, 2019; Grolig et al., 2019). Considero que estas são preocupações com a dimensão especializada da linguagem narrativa e com a forma de fazer sentido com ela, estando claramente relacionadas com as práticas escolares.

Creio, contudo, que existem indícios suficientes para considerar que a leitura partilhada de textos narrativos com as crianças em idade pré-escolar se constitui como contexto de desenvolvimento de diferentes dimensões da linguagem, já que, no contexto dessa prática, se exercitam simultaneamente dimensões básicas do desenvolvimento da linguagem e se inicia o desenvolvimento de dimensões especializadas da construção dos sentidos dos textos narrativos.

Ao convocar a consideração dos dois entendimentos sobre os efeitos linguísticos da leitura partilhada é também minha intenção destacar o denominador comum que une estas duas perspetivas, claramente constituído pela interação verbal. Em qualquer das perspetivas, os efeitos linguísticos são socialmente construídos na mente das crianças, o que, uma vez mais, destaca a importância da realização das práticas de leitura partilhada como instância desse andaime social interativo. Acredito que esse andaime, além do amparo e do desafio formal que proporciona (ao nível da linguagem básica ou da especializada), se constitui como contexto acelerador do desenvolvimento da linguagem oral e especializada quando é significativo para o aprendente. Quero com isto dizer que o conteúdo do diálogo parece ser um aspeto muito relevante nos vários estudos que investigam os efeitos linguísticos da leitura partilhada no desenvolvimento da linguagem, destacando-se a qualidade da interação, nomeadamente quando é realizada para pensar os sentidos (ou significados) do texto (Grolig et al., 2019; Hasan, 2002), quando é do interesse das crianças, tendo que ver com as suas experiências de vida, assim como quando é realizada de forma prazerosa e divertida. Acredito que são essas boas conversas, simultaneamente inteligentes e sensíveis, com sentido para e construídas à medida das próprias crianças, que geram a sua envolvência na prática interativa linguística (Laevers, 2001).

2. Boas conversas sobre textos narrativos lidos com as crianças em idade pré-escolar: possibilidades de investigação

Sempre me inquietou observar o empenho ingénuo de muitos jovens educadores, estagiários sob minha supervisão, em conversar sobre a capa, a contracapa, a lombada e a editora de um livro que estavam a ponto de ler com as crianças. Também o empenho em ler todo o texto narrativo evitando qualquer tipo de interrupção, e, uma vez lido o texto, em perguntar religiosamente às crianças se gostaram da história, algumas vezes inquirindo sobre o óbvio e quase sempre com fins avaliativos, mais do que para dirigir a atenção das crianças para significados mais complexos, elaborados e abstratos. Observei muitas vezes a relativa maior valorização do fazer qualquer coisa tematicamente relacionada com o texto (por exemplo, um desenho, um jogo, uma canção). Raramente observei os jovens educadores a partilharem as suas interpretações ou sensações de leitores. Observei-os quase sempre agindo como quem cumpre o ritual. Foram muitas as vezes em que, da minha perspetiva de observadora, imaginei as boas conversas que ficaram por acontecer, e foram poucas as vezes em que as conversas posteriores às observações dessas práticas de estágio conseguiram abalar as convicções dos estagiários que a minha supervisão não tinha, evidentemente, ajudado a desconstruir. E, quando, pelo contrário, isso aconteceu, houve algumas dores de crescimento.

Estou muito grata a estes jovens educadores por me terem ajudado a perceber como é difícil aprender a construir uma boa conversa com as crianças. Foi a procura da compreensão dessa dificuldade que me conduziu à descoberta da leitura partilhada como área de investigação. Uma das conclusões mais comuns nessas pesquisas é a de que os adultos diferem na forma como socializam as crianças nestas práticas em função do seu próprio perfil sociocultural (Williams, 2002). Outra é a de que, talvez por essa razão de fundo, é difícil construir boas conversas, mesmo quando realizadas de forma intencional e teoricamente informada, embora a investigação também aponte para os efeitos positivos do treino dos adultos na qualidade da prática e das aprendizagens linguísticas das crianças (Zevenberger e Whitehurst, 2003; Marjanovič-Umek et al., 2019; Sénéchal, 2017).

Essas pesquisas conduziram-me à identificação de uma área crítica na formação e na investigação, nomeadamente a constituída pela aprendizagem profissional inicial de educadores. Para contribuir para obviar à falta de investigação nesta área, desenvolvi um projeto científico-pedagógico que tenho implementado numa Unidade Curricular de que sou docente e responsável no Mestrado em Educação Pré-Escolar e Ensino do 1.º Ciclo do Ensino Básico na Universidade do Minho. Obedecendo às restrições do plano de Bolonha, essa UC tem lugar antes do contacto dos estudantes com a prática profissional, que apenas acontece no último ano do mestrado.

Em função do foco deste artigo (e das limitações de espaço que se impõem), destaco dois objetivos do projeto, nomeadamente a intenção (formativa) de proporcionar aos estudantes o ensaio (Grossman, Hammerness e MacDonald, 2009) da construção da leitura partilhada com as crianças, assim como a intenção (investigativa) de indagar as aprendizagens profissionais construídas. A recolha de dados que tenho efetuado confirma a complexidade inicial na conceção da prática da leitura partilhada das narrativas, mas revela também o inequívoco desenvolvimento do pensamento dos mestrandos, indiciando, por conseguinte, a construção de aprendizagens profissionais relevantes. No presente ano letivo, o projeto foi financiado pelo ‘Programa de Apoio a Projetos de Inovação e Desenvolvimento do Ensino e da Aprendizagem’ promovido pelo Centro de Inovação e Desenvolvimento do Ensino e da Aprendizagem da Universidade do Minho (IDEA), pelo que procederei a curto prazo à divulgação dos resultados desses estudos.

A referência a esta experiência serve aqui sobretudo como pretexto para deixar o repto de que a leitura partilhada seja assumida como objeto de investigação na comunidade científica e que seja objeto de divulgação na Entreler. O papel da leitura partilhada no desenvolvimento linguístico das crianças, de que acima dei conta muito sumária, faz dela uma prática de inquestionável valor na consecução das Orientações Curriculares para a Educação Pré-escolar (Silva, Marques, Mata e Rosa, 2016) e, naturalmente, do Plano Nacional de Leitura, o que a meu ver justifica o investimento em investigação que produza saber sobre as boas conversas que se constroem sobre os textos narrativos lidos. Tenho em mente estudos que procurem, por exemplo, respostas a perguntas como as seguintes:

Que conceções e práticas de leitura partilhada têm os educadores? O que pensam sobre como, porquê e para quê ler textos narrativos com as crianças? E como realizam de facto essa leitura? Como a articulam com o desenvolvimento curricular na educação pré-escolar?

O que revelam as boas práticas de leitura partilhada com estas crianças?

E que pensam e fazem os formadores de educadores? E os bibliotecários? E as famílias?

Para concluir

As boas conversas sobre os textos narrativos não deixam de fazer sentido a partir do momento em que as crianças aprendem a ler; pelo contrário, a partir desse momento, ganham outros contornos, que se complexificam ao longo da vida, como bem o ilustra a realização dos clubes de leitura dos leitores adultos. O enfoque nos leitores que ainda não sabem ler foi neste artigo subsidiário da exposição dos argumentos sobre a importância da realização das boas conversas. Da mesma forma, o foco nos textos narrativos não significa a valorização exclusiva deste tipo de texto, querendo sobretudo sinalizar que as boas conversas são irremediavelmente condicionadas pelo tipo de texto lido, pelo que conversar sobre uma história terá contornos diferentes de conversar sobre um texto de tipo informativo, por exemplo.

FINANCIAMENTO

Este trabalho é financiado pelo CIEd - Centro de Investigação em Educação, Instituto de Educação, Universidade do Minho, projetos UIDB/01661/2020 e UIDP/01661/2020, através de fundos nacionais da FCT/MCTES-PT.

É igualmente elaborado no âmbito do projeto PRT-MJC-13/2020, financiado pelo Programa de Apoio a Projetos de Inovação e Desenvolvimento do Ensino e da Aprendizagem, promovido pelo Centro de Inovação e Desenvolvimento do Ensino e da Aprendizagem da Universidade do Minho (IDEA).

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